domingo, 24 de dezembro de 2017

Crónica 91 [Tempos]

Sei que sou madeirense porque penso no tempo da Festa – ou, se mais vos aprouver, do Natal – o ano inteiro. [Talvez a minha espécie esteja em vias de extinção. Não sei.] E, agora que festejamos, dei por mim a pensar em outros tempos – dentro e fora da Festa.
Com efeito, volta e meia, é isto que acontece: a minha infância dá de caras com este eu bojudo, barbudo e careca. E não sei o que dizer. Quero falar, o menino que fui também quer falar, mas parece que não nos entendemos – porque não falamos já a mesma língua, porque fazemos as perguntas erradas, porque ficamos emaranhados num jogo de culpas dadas e arrancadas.
“O que andas fazendo, Mascarilha? Andas esquecido de mim?”
“O que estás a fazer, Fantasma? Deixa-me da mão!”
Na segunda metade da década de 80, um menino ficava horas – horas, sim, digo-o sem hipérbole – de olhos colados a uma montra no final da Rua Ivens. Via e estudava e comparava uns bonecos de acção, paradigmas de estilo e de bravura bélica – concentrados em pouco menos de 10 cm de altura e petrificados em invólucros de cartão e plástico transparente. Mais tarde, quando pôde, o rapaz foi usando a semanada completa para comprar um ou outro ‘G. I. Joe’. Depressa, porém, fugiu-lhe o entusiamo por entre os anos da idade que ia a galope. E a esta fuga juntou-se uma tristeza inexorável – que o rapaz tentou mitigar interrogando as caras mumificadas dos bonecos. Era uma tristeza de quem chega tarde.
A meados da década de 90, um adolescente regressava a casa, numa noite, após um dia de escola e de trabalho. Ia sentado, numa das cadeiras de plástico do fundo solitário do autocarro amarelo, moldando o corpo aos solavancos. Deu por si a pensar no dia, na noite, na vida. [O que pensou ficou-lhe sulcado na mente – como se de repente um prelo tivesse começado a imprimir ou uma chama tivesse lavrado uma queimadura; por isso, quando quer, quando não quer, este jovem é sugado de volta a essa noite.] Pensava que estava cansado, combalido, que estava sozinho – e que havia graça e bondade em estar cansado e em estar sozinho para desfrutá-lo. Pensou que era merecedor de um resto de noite de descanso, que havia contentamento apesar de descontentamento – e que, no futuro, voltaria às curvas cada vez mais difusas desta Estrada do Visconde Cacongo, a caminho do Jardim Botânico, a caminho de uma casa que hoje está soterrada.
Coloca-se a ficha na tomada e surgem as vestes luminosas do pinheiro de Natal. São as luzes de 2017 que olhamos – e são as luzes de 1987 que nos olham de volta. Os olhos piscam com as gambiarras e com a luz do filme na televisão – e rapidamente ficam cansados. [É uma maçada.] Desligamos o pinheiro até acabar o filme. Ligamos. Desligamos quando o sono desmerecido sobeja – há que poupar na conta da luz porque, na verdade, a vida está difícil. [Em 1987, em 1997, as luzes ficavam a fazer companhia ao Menino Jesus no presépio.]
Passam os anos, passam as Festas [ou os Natais]. Mudam os marcos do tempo, muda a substância do tempo – tiramo-lo de um lado para pôr noutro, subtraímo-lo além, acrescentamo-lo aqui. Mas o resultado deste cálculo parece ter um destino inexorável: diminuir, chegar a zero, desaparecer – assim como vi desaparecerem os entusiasmos, os contentamentos, de outrora.
“O que andas fazendo, Mascarilha? O que estás a fazer, Fantasma?”

[Crónica publicada no JM, 23-XII-2017, p. 17.]

sábado, 9 de dezembro de 2017

Crónica 90 [Reencontro]

A mulher jovem ouviu a chuva miudinha cair sobre o colmo – um reencontro após poucos dias. Ela foi até o umbral, viu o pó do terreiro afogar-se, lento, na água, aconchegou o abafo e voltou para dentro.
Saiu à porta logo depois, de cabeça descoberta, desimportada da chuva. Virou a esquina da casa, estremeceu os ombros de frio, e começou a subir a vereda lamacenta. Ia descalça.
No corpo o orvalho ia-lhe pousando – àquela luz da manhã peneirada por uma malha de névoa, parecia que lhe cresciam pérolas brilhantes no rosto e nos cabelos. A bebé que levava nos braços – uma pequenina larva, dir-se-ia, comprimida como um casulo no melhor pano de linho que havia – contraía as pálpebras e as bochechas tenras ao toque das gotículas que caíam.
Ela calcou a fofa terra de um poio, no alto, e parou. De olhos – e lábios – deitados a um fundo precipício, olhou a bebé e apertou-a contra si – corpinho contra peito, carinha contra cara e ombro. Ajoelhou-se e aconchegou o recém-nascido dentro de um rego entre camalhões. Levantou-se, foi até o poço que ficava próximo do bardo e olhou para o fundo. Naquele momento, a água enfeitada de auréolas irrequietas furtou-lhe um último reconhecimento. Não importava – sabia que era dormência, dor pasmada, cabeça vazia de cismar; fora isso, ela não era nada, não reconhecia consolo, não se reconhecia.
Deixou-se cair ao poço.
A bebé acabou por abrir os olhos de avelã – que se esquivavam, o melhor que podiam, à chuva. Depois, um pequeno cão – uma cadelinha velha –, de quadris escalvados de sarna e faro experimentado, achegou-se. Cheirou o tubinho amortalhado de carne humana quente que estava na terra, virou a cabeça e deitou-se ao seu lado. Quando a bebé começou a chorar, a cadela lambeu-lhe a testa e as fontes.
Um outro cão – um canzana imundo, faminto – rondou, de faro confundido pela chuva, e arreganhou todos os dentes. A cadela rosnou – e bastou pôr-se sobre as patas para que o outro cão escondesse os caninos e fosse embora com um ganido submergido.
Oitenta anos depois, uma avó falava à neta. Ainda que sabendo das histórias que sempre correram na família e na terra, falava-lhe da sua origem, da sua agrura primordial, da sua mãe desaparecida.
«É verdade, filha, foi assim. [A neta contraía as pálpebras para que as lágrimas não corressem.] Não tem mal, filha. A vida é como é. Eu fiz o que pude – crescendo sem mãe. As pessoas contavam – contaram-me de como foi. Sei que foi num poço – e depois as pessoas falaram de um cachorro que estava ao pé de mim quando o meu pai me encontrou. A minha mãe... – como é que se diz hoje? Deve ter tido uma depressão – uma depressão depois do parto. Ninguém deve ter compreendido. Sabes como é, naquele tempo, a minha mãe teve-me sozinha, agachada no palheiro, sem nada, sem ajuda, sem cuidados… Aquilo era uma miséria. E logo no dia a seguir era preciso fazer a vida, andar na fazenda. A dor tomou conta dela – e ela não sabia dizer, e ninguém ia saber ouvir. Coitada da minha mãe… Não importa, filha, não chores. Eu fui – eu penso – boa filha para o meu pai, boa mulher para o teu avô, boa mãe, boa avó. [A neta soluçou.] Eu criei uma família de gente boa. Eu estou orgulhosa. Agora, só peço a Nosso Senhor que me leve – eu estou cansada, filha, Nosso Senhor que me leve. Eu penso que fui uma pessoa recta. Acho que mereço o céu. Eu só quero, depois de morrer, dar um abraço e um beijinho à minha mãe.»

[Crónica publicada no JM, 09-XII-2017, p. 15.]