domingo, 17 de setembro de 2017

Crónica 84 [Ensaio sobre o Medo]

“Filho… olha. Filho, olha p’ró pai.”
O rapaz, conquanto de coração oprimido na garganta, respondeu à segunda interpelação e levantou a cabeça para o pai. Pensou que ouviria uma frase imperativa e lapidar, em todos os sentidos ditos e entrelinhados, e assim, por breves momentos, arrostou o medo – como se caminhasse até à beira de uma falésia precipitada na escuridão. Sem este gesto – sem esta suspensão do medo, que fez crescer em coragem o pai –, a voz escassa que queria falar não teria cortado o silêncio – e não teria sido escutada.
“Meu filho… não tenhas medo.”
Três semanas passaram – três semanas apaziguadas – e o pai desceu os seus sete palmos de terra, num dia afogado de calor e de humidade colada nos corpos e nos cabelos.
Durante e após o luto, o rapaz teve muito em que pensar – e em que cismar –, no redemoinho dos seus quinze anos. [Quinze anos – e era já maciço como um arpoador de baleias.] Tão pouco ouviu o pai falar, na célere passagem dos anos, que não sabia o que fazer com o pouco que tinha escutado. [Por vezes é assim, a relação entre gerações. Agarremo-nos ao que temos.] Sobretudo, aquela sentença tinha ficado a pairar, dentro de casa, fora de casa, como um outro sentido a peneirar a percepção das coisas e a tecer a convivência com os homens.
A vida continuou, pois, na aparência pouco diferente, na verdade nada igual.
“Não tenhas medo”, pensava – ou ouvia – o rapaz, quando se aproximava, dia após dia, dos portões da escola. Nessa manhã, porém, foi com um sentido mais apurado que percebeu o farejar da matilha de “bullies” que o esperavam. Repetiu, entre dentes: “não tenhas medo” – e, agarrando nesse arpão, aprumou as costas e levantou a cabeça. Tornou-se a imagem do poder, da ausência de medo. Os agressores, como cães, fungavam de facto todos os movimentos do rapaz, à procura de eflúvios de temor que contagiassem o ar. Dia após dia, foram ficando mais mansos, quietos, desviando o olhar e desintumescendo os focinhos. Um deles, interpretando mal os seus próprios instintos de bicho, certa feita atreveu-se – e, abandonado pelos restantes, levou um pontapé no rabo e fugiu.
Sem o rapaz se aperceber, uma coisa que demandava resolução ficou, destarte, resolvida. Sobrava outra.
A sua casa, outrora com quatro viventes, agora compunha-se da mãe, da irmã mais nova e dele. [Uma mulher, uma criança, um adolescente; nenhum homem.] Portanto, ainda hoje – como se hoje, com efeito, fosse diferente de ontem –, esta casa tornou-se, aos olhos de outros, uma casa vazia de poder patriarcal – vazia de um poder a servir de marco, de fosso, de muralha, no teatro de guerra civil entre família e vizinhos. Em face disto, pouco tempo decorreu até que ele, com voz brava, expulsasse de casa tios e tias, primos e primas, que ali iam, sem respeito, dar livre curso a frustrações, vazando-as sobre quem parecia indefeso. [Encontrou coragem adicional para isso quando, cheia de aflição, a irmã pequenita gritou com um tio que tinha cingido, com a pata imunda, o braço da mãe.]
“Não tenhas medo”: nestes tempos – em todos os tempos –, o que de melhor pode dizer – e ensinar – um pai a um filho? Quantos filhos precisam de ouvir estas palavras? E quantos pais precisam de dizê-las?
[Poderá não vir ao caso, mas apetece-me acrescentar: escrevo estas linhas pelos dias em que completo os meus trinta e sete anos. Olhai: 37 – um número feito de arestas e vértices, de lâminas e pontas.]

[Crónica publicada no JM, 16-IX-2017.]

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