sábado, 19 de agosto de 2017

Crónica 82 [[palavras?]]

palavra de honra que não sei o que dizer
não sei se não seria melhor que esta minha crónica ficasse em branco – que ficasse a metade de uma página deste jornal a encher os dedos e a boca e os olhos de silêncio – que todo o ruído escrito ou falado fosse filtrado por uma rosácea muda – que houvesse apenas uma reverência e uma homenagem cabisbaixas – aos inocentes martirizados
palavra de honra que não sei – mas escrevo por revolta – por espanto – por estupefacção – por torpor fremente – perante o absurdo – e a estupidez desta morte – pelo que aconteceu na terça-feira – absurdo – absurdo – absurdo – devia encher este escrito da palavra absurdo – repetida – absurda – até sempre
o que escrever? – que este ano tem 365 dias – 8760 horas – 525600 minutos – 31536000 segundos – e que foi naqueles segundos – naqueles – naqueles – naqueles – segundos – que a morte veio derramada – pesada – cavernosa – no corpo secular de uma árvore
uma árvore – um símbolo de vida
a morte caiu como se leite materno fosse conspurcado
a morte caiu no dia da padroeira – da Mãe – da Ilha – consagrada protectora depois da aluvião de 1803 – consagrada na esperança nascida há mais de dois séculos – a morte caiu quando se vivia de mãos em concha sob o coração – num tempo de gratidão por graças concedidas – caiu quando se acreditava num outro dia – melhor – mais beatificado – mais lauto – de devoção limpa – de benquerença – de olhos confiantes sobre o porvir amado
uma árvore desabou sobre promessas feitas – sagradas – esperançosas – e é como se a puta da morte usasse a vida em lenho para esmagar a vida prometida
palavra que não se percebe – que não se consegue traçar uma linha de ordem – de sentido – de paz – de desígnio – sobre o mapa da dor impresso no chão do Largo da Fonte
não sei se algum dia uma criança acreditaria que uma árvore – de copa fresca – testemunha de brincadeiras – de risos – de folias – de palavras de carinho e de acerto – de juras – de folhas falando com o vento – não sei se a criança que eu fui acreditaria que uma árvore caísse e traísse quem protegeu – que traísse quem viu chegar – prometer – sair – subir para se ajoelhar e rezar a Nossa Senhora – crescer – amadurecer – envelhecer – uma árvore que abençoou crianças – casais prometidos – amigos gargalhados – famílias de braços enganchados – idosos cambaleantes – ébrios confusos – visitantes a ouvir a harmonia da água corrente – devotos a perscrutar o crepitar das chamas das velas e o escorrer inaudível da cera
uma árvore – e homens – porque os homens já levantam os dedos em riste – em acusação – em defesa – lançam mão de papéis – de argumentos – de testemunhos – de coisas recentes e vetustas – para que se saiba quem – quem – quem – quem foi – quem devia – quem há de ser culpado – e de ser ilibado – homens falíveis – todos – acabrunhados – arregalados – numa outra vertigem
palavra de honra que não sei o que mais escrever – uma dor perplexa desceu sobre o Monte – sobre a Ilha – como um manto nebuloso em pleno ardor de agosto – e o sufoco não deixa os sobreviventes – todos nós – respirarem como dantes
palavra que… – palavras – tão pequenas – que uso têm elas agora?

[Crónica publicada no JM, 19-VIII-2017.]

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