sábado, 13 de maio de 2017

Crónica 75 [Cães]

Ponho no papel alguns fragmentos rasgados de histórias.
Um homem confessou que, quando jovem, poucos momentos lhe eram tão gratos como aqueles em que se refugiava no quarto – a virar fólios de poesia – acompanhado do seu cão, que ficava deitado na cama. Eram audíveis apenas as respirações sintonizadas de ambos, homem e animal, em comunhão silenciosa.
Uma avó avisou os dois netos – o cão já não tinha direito a um lugar entre a família. A roupa no estendal havia sido passada pela máquina trituradora dos caninos do bicho. Portanto, o cão teria de ir embora – e que eles, os meninos, ficassem cientes disso. Eles arregalaram os olhos de medo; porém, minutos depois, estavam ocupados com brincadeiras, com outros pensamentos. Um dia deram pela falta do cachorro mas concordaram, sem preocupação, que andaria nas vizinhanças a deambular – e que voltaria, como todos os dias voltava, para casa. Desceram à cidade. De dentro de uma carrinha – o veículo do canil para transporte de animais –, um cão, que reconheceu as suas vozes, largou a ladrar com desespero. Foi a vez de os meninos reconhecerem, com comoção: era o seu cão que ladrava, que ali estava em prisão, que de casa tinha sido expulso, para sempre.
Um rapaz a entrar na puberdade era alvo de zombaria pelos rapazes mais velhos da casa ao lado. A zombaria tornou-se violência – davam-lhe um carrolaço furtivo quando passava na vereda de terra batida. O rapaz foi aguentando, calado, durante meses. Na volta de um dia de escola, encontrou na vereda o cão dos vizinhos – uma bola inerme de pêlo que mexeu a cauda quando o viu. Aos olhos dele, o animal pareceu patético. Pensou o rapaz, furibundo, que não era tarde nem era cedo. Seria aquela a sua vingança. Puxou a culatra do pé atrás e deu um pontapé – como se quisesse chutar uma bola de futebol pelos ares – na mandíbula do cão. Ouviu-se um som único, metálico, de osso contra osso, de dentes a bater em dentes.
O adolescente tinha exames nos dias seguintes e estudava os manuais, como peripatético solitário, no quintal da casa. Solitário, não – o cão da família estava deitado à sombra e virava o focinho para o deambular do estudante, o qual, por sua vez, para fazer a revisão da matéria, olhava para o cachorro e explicava em voz alta. O bicho abanava a cauda e fazia subir e descair as orelhas. Anos depois, a mãe ligou ao jovem adulto, que já estava na universidade. O cão tinha-se arrastado até à porta de casa e aí havia tombado, a espumar. Tinha sido envenenado.
[Como acontece amiúde nestas crónicas – nestas histórias –, começo por querer narrar coisas suportáveis, contentadas. Mas os dedos sobre o teclado acabam por dedilhar palavras outras. Neste caso, e em substância: digo o que vi – e o que vejo; falo do que me contaram – e do que me contam. Há cães soltos e desguardados; cães assustadiços e de olhos aflitos no meio do asfalto após as chuvas; cães abandonados longe do lar, para que não encontrem o caminho de volta – que perseguem, nos primeiros quilómetros, o carro que o dono, de olhos no retrovisor, faz acelerar; cães acorrentados; cães presos por correntes curtas e apertadas como garrotes; cães com correntes que lhes corta a carne; cães atolados em imundícies; cães de pêlo a cair, de peles despregadas dos ossos. Cães – que, na sua desgraça, são vítimas e testemunhas do atraso civilizacional dos homens.]

[Crónica publicada no JM, 13-V-2017, p. 2.]

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