sábado, 15 de abril de 2017

Crónica 73 [A Carga]

Ele orgulhava-se – sem bazófia, sem fazer gala disso – da força que tinha. No mercado, enchiam-lhe os maiores cestos de vime com bananas. Ajudava-se ao peso – de setenta, oitenta quilos – e, com a base do cesto como uma cunha a lhe trincar o lombo esquerdo, subia, correndo, os degraus até o andar superior. O patrão ficava contente: um dia elogiou-o dizendo – com um jeito trôpego – que era um bom burro de carga. O homem, de pequena estatura – pouco mais de metro e meio –, aceitou como pôde o elogio e viu-se dilatado nos seus brios.
Trabalhou no sector da banana – carregando, outrossim regando, cavando e mondando de joelhos a terra até as unhas começarem a sangrar. Andou depois nas obras, e o encarregado, que lhe apreciava a afoiteza, a desenvoltura e a força, nomeou-o responsável pela condução dos trabalhos nas suas ausências. O homem tanto vestia um pano de parede em tempo inédito como, para dar o exemplo aos serventes – apesar de a isso não estar obrigado –, carregava três sacos de cimento de uma só vez: um às costas, os outros à laia de braçados, cada saco cingido por cada braço.
De maneira que era assim a vida, desde a adolescência – trabalho, trabalho, trabalho. Nada havia de excepcional nisto. O homem, em menino, cresceu vendo pai, tios, irmãos e primos mais velhos – todos baixos, troncos secos; todos bois de força – acorrerem na maré baixa à praia e encherem sacas de areia molhada, que transportavam, à centena de quilos de cada vez, até aos sítios altos da freguesia. Viu isto – e outro tanto. E o que foi vendo, no que ao trabalho concerne, haveria de ser o seu destino – sem drama, sem fatalismo, sem consciência até.
[É bom de ver que estes homens são de molde a envelhecer cedo – de trabalho e de álcool. Amiúde são acometidos de uma trombose. Cedo entrevados e embrutecidos, com os ossos torcidos das cargas, tornam-se, naufragados a um canto da casa, trastes ébrios dedicados a massacrar e a condenar as almas dos familiares. Estes comportamentos também os foi observando o homem da nossa história – agora, todavia, com um certo pressentimento de desgraça.]
Com vinte e picos anos de idade, o homem juntou-se com uma mulher, após um namoro sumário e alegre. O neófito casal foi viver com a família dele. Foi dada autorização para levantar um piso sobre a casa paterna, que era um completo ninho onde coabitavam três gerações e inclusive parentes colaterais. O homem assentou blocos, armou cofragem e deitou, com familiares e amigos, a laje final. Esta tarefa, como se costuma dizer, deu vela – às quatro horas da manhã ainda um verdadeiro cordão humano passava, de braço em braço, baldes de massa.
Mas depressa a convivência se tornou um inferno. Entre pais, sogros, irmãos, cunhados começou um fluxo peçonhento de bilhardices e invejas, de rancores e ressentimentos. Rumores tépidos subiram a gritos. O patriarca, falho de discernimento, optou por culpar o casal recém-chegado – que entretanto tinha tido um bebé. Demente à força de aguardente e por falta de paciência e compreensão, numa noite o pai chamou o homem, o seu filho. Disse-lhe que, se no dia seguinte ele ainda ali estivesse, o mataria, assim como à mulher e ao filho, e cavaria um buraco na fazenda para os enterrar.
No dia seguinte já não estavam. Para o homem, esta carga foi a mais pesada que alguma vez teve de carregar. Uma carga que nunca poderia ser aliviada. Uma cruz.

[Crónica publicada no JM, 15-IV-2017, p. 2.]

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