domingo, 5 de fevereiro de 2017

Crónica 69 [O Sangue]

Era um dia ofegante – de uma luminosidade baça e coada por um céu forrado. Era a escola primária, de portões franqueados, ou arrombados, ao fim-de-semana. Estava ele, e outros miúdos, a correr no espaço do recreio e no campo de futebol, na escola enfastiada durante a semana de aulas, e apetecida nos dias de descanso e férias. Por alguma razão inaudita, nesse dia estavam ali dois homens – os pais de dois dos companheiros de brincadeira.
A brincadeira era a apilhagem: uma prova de atletismo de escassos metros variáveis com barreiras – muros, pilares, vedações –, sem descanso ou preparação, num cenário de guerra furtiva. Eram todos contra todos, e todos presumíveis – e súbitos – inimigos, quando tocados por um braço alongado como um florete.
Também ele, a certa altura, sofreu uma estocada e se tornou perseguidor. Conseguiu roçar a camisa do amigo distraído que estava por perto, e irrompeu triunfante e orgulhoso em correria, olhando para trás. Quando virou a cabeça já era tarde – chocou contra uma aresta de um pilar de betão. O embate abriu-lhe a testa, que ficou assim dividida em duas partes iguais por uma fronteira cirúrgica e funda.
Não houve muito sangue – somente algum, no início. Rapidamente o sangue secou quase por completo, como se a lâmina da aresta tivesse, no mesmo golpe, cortado e cauterizado. Ele ficou atordoado, lacrimoso, e os primeiros sons que os ouvidos receberam, após o acidente, chegaram abafados.
Os dois adultos aproximaram-se e a ajuda que deram foi como segue: riram-se; disseram-lhe que fosse para casa – que ficava a uma distância de mais de três quilómetros; e ainda sugeriram que, para que o sangue não desse em escorrer pela cara, caminhasse de testa para o ar.
A mãe, quando o viu, quase enlouqueceu de espanto e dor. Chamou de imediato um táxi e levou-o ao hospital, maldizendo sempre os homens que, na escola, não tiveram a dignidade de levar uma criança ferida aos cuidados médicos.
[No hospital fizeram um bom trabalho de costura. Mal lhe ficou um farrapo de cicatriz.]
Anos depois – sete ou oito –, ele estava na mesma escola, no mesmo lugar, com alguns dos mesmos camaradas. [Olhava, furtivo, a espaços, para o pilar – quase sempre o fazia, estando ali.] Era uma noite de vento e ornada a luar. A competição – não uma brincadeira – que os ocupava era... uma qualquer, acompanhada da violência da idade. Um dos que por ali andava ofendia-o com apartes triturados entre dentes.
Justiceiro e farto – farto de dias e de semanas –, ele derrubou o ofensor, que foi sentir a frieza do chão de cimento. Ambos se alinharam para o duelo. Formou-se logo em círculo uma matilha sedenta que, nos poucos uivos perceptíveis que emitiu, previu uma vitória dele. O outro, que se sentiu despeitado e despejado de padrinhos, chegou também à conclusão que não tinha corpo para dar cobertura às dívidas que, em forma de insultos, lhe saíram da boca. Com cobardia, colocou uma chave na mão fechada, e só precisou de um golpe, entre as taponas que ia levando... Rasgou-lhe a palma da mão esquerda. Ele, golpeado e a sangrar, fez uma coisa singular naquela idade: esfregou o sangue na cara do oponente. Depois, foi-se embora, sem triunfo mas com orgulho, a gotejar um sangue que demorou a estancar. Em casa, a mãe ajudou-o a tratar da ferida – que deixou uma lembrança de cicatriz.
Por acidente, por distracção, por ataque, por defesa, por automutilação – quando sangramos, quem cuida de nós?
[E quem nos acode quando sangramos sem se ver – e sem o saber?]

[Crónica publicada no JM, 04-II-2017, p. 2.]

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