sábado, 21 de janeiro de 2017

Crónica 68 [Opções]

Homens e mulheres há que me falam; e, ainda que raros, tenho os meus momentos de bom – ou sofrível – ouvinte. [Faço o que posso.] Resolvi-me a registar algumas das vozes que tenho ouvido.
«É assim esta tristeza pasmada – a de quem encontra no chão uma borboleta morta. Percebes? Ou nos curvamos e, com dois dedos em pinça, tomamos a borboleta para a palma da mão – ou acometemos uma das asas com o bico do sapato.» Disse-me ela.
«Lembro-me, tinha eu sete ou oito anos, estava só em casa – e o telefone tocou. Era – claro – um telefone fixo, preto, pesado, com um disco que girava como uma matraca. Tocou e atendi. Ninguém respondeu. Voltou a tocar – atendi. Do outro lado, um homem de voz etilizada e envenenada disse que ia matar o meu pai. Ainda hoje, salto quando um telefone – fixo ou móvel – toca. Na verdade, ou esqueço-me disto – ou lembro-me. Ou deixo ficar – ou vigio o telemóvel.» Disse-me ele.
«Sei que ninguém... Sei que pouca gente percebe, mas gosto da sensação de leve torpor que o álcool me dá – após três ou quatro ou cinco copos engolidos. É isso que me faz chegar ao fim do dia. Por vezes o entorpecimento, sem eu dar conta, caminha veloz – de leve a pesado. Cada dia – em cada fim de dia que passa – fica mais pesado. Ou paro – ou continuo a tentar chegar, deste jeito, ao fim do dia. Ou paro – ou então, diz-me o médico, vou chegar mais depressa ao fim da vida.» Disse-me ela – e riu-se.
«E passou-se isto. Ele subiu as escadas e, de testa franzida e voz rouca, pediu, do lado de lá do portão, para falar comigo. Não respondi – abri o portão. Ele murmurou duas ou três palavras. Acho que ouvi: “Eu peço desculpa.” Dei-lhe um empurrão – bateu com as arcas na parede e ficou sentado no chão. Ele, o meu irmão, levantou-se e, com altivez forçada – ele que nunca teve nenhuma, eu sei disso, a mim não me engana –, disse-me mais três ou quatro palavras antes de se ir embora. Julguei ouvir algo como: “Um abraço. Bom Ano.” Parecia impossível. Das duas uma: ou eu perdoava – ou… Mas perdoar é que nunca.» Disse-me ele – com uma altivez que me pareceu ser postiça.
«A coisa está deste jeito – sempre esteve, aliás. Abro o caderno, olho para ele, fecho o caderno, volto a abrir. Também poderia ser uma página Word, imensa, pálida, a pulsar nos milhares de pixels do monitor. Abro a página – fecho a página. Vou a tropeçar até à cozinha. Nem a lista das tarefas do dia seguinte – e o dia seguinte chega sempre demasiado cedo – consigo pôr no papel. Não consigo escrever – eu, que sonho escrever. Sempre sonhei, aliás. Ou faço o que devia fazer – ou tenho medo de falhar. É uma tristeza.» Disse ela. Perguntei-lhe se essa tristeza poderia ser, como alguém me havia descrito antes, a de quem encontra no chão uma borboleta morta. Ela disse que não percebia – que isso não fazia sentido.
«Deixemo-nos de lamúrias – ou, o que parece diferente mas é o mesmo, de moralismos.» Disse-me ele – e continuou a lamentar-se.
Estarrecidas, estas pessoas falam assim comigo. Não tomam opções – deixam, ao contrário, que as opções as tomem a elas, como um assalto ou uma agressão inevitáveis. [Digo eu, que não pretendo ser de diferente igualha.] O ano ainda agora começou e parece ser afinal a mesma coisa. Ano novo – ano velho. 

[Crónica publicada no JM, 21-I-2017, p. 2.]

sábado, 7 de janeiro de 2017

Crónica 67 [Os Perigos]

O homem queimou a língua – não esperou que o milho cozido, a fumegar no prato fundo, amornasse. A mulher riu-se e disse que, com esta comida, era sempre a mesma coisa. [É a época da Festa; este prato não é típico da quadra, mas é predilecto.] O homem encolheu os ombros, com a boca – e as orelhas – a arder, e provou a espada com cebolada, também a fumegar. Queimou outra vez a língua.
Concluído o almoço – acompanhado de uma garrafa de vinho, não menos –, disse o homem: “Vou ali – já venho.” Abriu o portão e saltou os degraus até à estrada. Encostou-se a uma parede – acto que nele era inusitado –, levou à boca o último cigarro do maço e passou o polegar sobre a roda de pedra do isqueiro. Olhou durante dois ou três segundos para a chama. Abrigou a pequena labareda com a mão livre e incendiou o cigarro. O fumo da primeira baforada – assim como das seguintes – saiu-lhe pelas narinas. [A pequenada da família, maravilhada, dizia-lhe que ele parecia um dragão.]
Na estrada vinha um adolescente de bicicleta. Ao passar em frente da nossa personagem principal, a cremalheira da bicicleta saltou – como uma espoleta com vida própria, e caprichosa. O homem que fumava levantou a cabeça e ficou a olhar aquele mecanismo, que pareceu ficar interrompido no ar. Quando baixou os olhos, ainda viu o corpo do adolescente ser atirado – como uma massa de braços e pernas desengonçados e emaranhados – para uns arbustos que já há muito tempo não mereciam a atenção de um jardineiro. [Tudo ficou novamente em suspenso.] Depois, quando estava pronto a ir em auxílio – com certeza que o rapaz tinha partido a púcara –, o homem viu sair o projéctil humano descuidado que a vegetação tinha recebido. O rapaz deu alguns passos; não parecia ter ficado magoado; não aconchegava ou massajava qualquer parte do corpo; veio à estrada, tomou a bicicleta; mais adiante, levantou do chão a roda dentada avariada; sentou-se no tratuário. O homem mexeu o queixo quando os olhos de ambos se cruzaram; no fundo, perguntava: “Tudo OK?” O rapaz levantou o polegar da mão direita; logo ergueu-se e escoltou, pela estrada fora, a bicicleta magoada.
Um Toyota de cor rubra aproximava-se da encruzilhada desta história. A condutora, uma jovem mulher, vinha sozinha, risonha e falastrona com o telemóvel colado ao ouvido. [A mão livre tinha de dar conta do volante e das mudanças.] Um pombo desembestado e confuso passou em voo baixo e foi de encontro ao chuvento da janela da condutora. [Por pouco o bicho não fazia companhia à jovem, no interior do carro.] Este choque obrigou a suspensão da marcha. A mulher, agora abalada, levou algum tempo a tomar sentido de si. Reiniciou a jornada apenas para voltar a travar, alguns metros adiante, com estrépito: uma adolescente que fitava o telemóvel – Pokémons? Facebook? – havia se atirado sem cuidado do passeio para o caminho. [De novo, um tempo suspenso caiu sobre esta estrada.] A condutora e a adolescente – só lhes lembrou sorrir, a primeira com nervosismo, a segunda sem isso.
Passadas estas cenas, e acabando-se o cigarro – tudo o que fica narrado passou-se durante um cigarro, sorvido com sofreguidão –, o homem resolveu voltar a casa. [Tinha a boca seca.] Atirou o cigarro ainda aceso ao chão e subiu as escadas. Não tinha reparado que na parede onde se tinha encostado estava um sinal que proibia fazer lume. Por detrás da parede estava um tanque de gás que servia o prédio onde vivia.
[Contra os perigos que nos espiam – e são muitos –, qualquer vigilância é pouca. Bom Ano.]

[Crónica publicada no JM, 07-I-2017, p. 2.]