sábado, 10 de dezembro de 2016

Crónica 65 [Duas Histórias]

O veículo branco cruzava as águas negras do asfalto. Quase tudo, naquele caminho, naquela ruralidade, era noite. De longe à lonjura, alguns oásis luminosos surgiam – postes de luz que deixavam perceber melhor linhas ora descontínuas, ora contínuas, acácias, eucaliptos, novelos. Ali, não era a escuridão que constituía o intervalo da luz. Ao casal que viajava somente restava confiar nos faróis vagarosos para aclarar a vista e expurgar destas profundezas caóticas algum rumo. Iam, ele e ela, em sossego, conversando, maravilhados pelo negrume primordial. Andados alguns quilómetros, entraram numa curva apertada de ângulo e de visão – entre as várias em que a estrada era pródiga – e ele, o condutor, obrigou-se a parar a navegação. [Não houve travagens ou guinadas bruscas.] Em cima da curva, no meio do caminho, estava uma figura – um homem, vestido de um preto total; ao lado dele, um animal, um cão – também de um preto incessante. [Estes entes existiam porque tinham contornos – pouco mais. Outro carro teria abalroado esta parelha sem cuidado.] Nem maravilhados já, nem assustados ao princípio – ficaram os viajantes estranhados com a aparição. O homem descoberto, de flanco para o carro, olhou e arreganhou os dentes, que surgiram alvos à luz dos faróis. [Mais tarde, o casal ainda discutiu, por várias vezes, se aquele sorriso era sardónico ou complacente ou zombador.] Ele, o condutor, ainda abriu a janela e disse: “Chefe, cuidado com a curva.” Ela exigiu logo que a janela fosse fechada e que se fizessem ao remanescente da estrada. O vulto foi se afastando, devagar, para o cotovelo interno da curva.
O barco de pesca – um atuneiro – regressava com a exaustão a lhe ranger no cavername satisfeito de peixe. Era noite, e os homens do mar, afora as excepções necessárias, dormiam. Ali, naquele atlântico fora do tempo, não havia longe nem perto. A luz que havia vinha de dentro daquele viajante colectivo. E assim a proa ia andando – dividindo o caminho negro que ora se alterava, ora colaborava na jornada. Um velho pescador, a sofrer uma insónia súbita ou esperada, levantou-se do beliche, colocou o boné na calvície, e subiu das entranhas do barco até se descobrir ao ar salino. Postou-se a estibordo e fincou as mãos na borda do casco, com os contornos do castelo de proa nas suas costas como uma presença ensombrada. Assim ficou, durante vários minutos. Subiu, então, a borda, e começou a urinar no mar. Esta tarefa costumeira, enfim, não lhe ofereceu – nunca lhe tinha oferecido – perigo, mas a verdade é que uma oscilação maior do atuneiro precipitou-o ao mar. Ninguém havia dado conta. O homem não gritou. [De que lhe serviria?] E o barco continuou o regresso. Andadas poucas milhas, um dos companheiros subiu à popa e pôs-se a olhar, habituando os olhos às oscilações ténues entre as trevas do mar e o ocre da espuma das ondas. Guinou, com brusquidão, a cabeça e cerrou os olhos. Viu: um boné, quase indistinto, nas águas, que caminhava sobre a ressaca deixada pelo barco. [Tempos depois, ao pensar nestes acontecimentos, disse que lhe pareceu que o chapéu perseguia o barco.] Deu o alarme – homem ao mar. Toda a gente acordou – toda a gente se sobressaltou. Por mais que parecesse impossível – e parecia, ou era, segundos alguns –, no mar sem fim, ter sucesso na descoberta do companheiro caído, o barco inverteu a marcha. O pescador foi encontrado.
[Aqui ficam estas duas histórias – de viagem e vigília; de sorte e insólito.]

[Crónica publicada no JM, 10-XII-2016, p. 2.]

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