domingo, 13 de novembro de 2016

Crónica 63 [O Que É um Homem?]

O homem, de braços pendentes e pernas oscilantes como um símio, chegava à casa – vazia e arrendada – pela tardinha. Antes de subir o lance de escadas que desembocava na porta de madeira de verniz estalado, lançava, roncando, uma mão à parede de crespo. [Poderia a parede ser de espinhos, ou ter lodo, ou o que fosse; não importava – aquelas mãos estavam dormentes.]
Metia a chave na fechadura como quem desfere um soco contra o abdómen da porta e empurrava-a com um pontapé. A porta batia como uma hecatombe terminal – um dia aquelas dobradiças teriam de ser substituídas – e este acto de violência dava-lhe satisfação. [Não muita – alguma.] Antes de se impelir para o interior, grunhia – ou berrava – duas ou três imprecações obscenas, jorradas com um fio de saliva peçonhenta, que chocariam quem assistisse a esta cena.
A porta ficava aberta para quem quisesse ouvir. Ele esperaria a mulher – que chegaria depois. Enquanto não chegava, havia pretextos para pôr ao lume – ou manter bem quente – um refogado ruidoso de alhos e bugalhos com aguardente em peça e vinho carrascão. Era porque ela se demorava – e o que andaria a fazer? Era porque ela – de certeza – estaria metida com outro homem. [Na verdade, estava a trabalhar – e trabalhava muito por uma recompensa magra.] Era porque o vizinho – um jovem que ocupava o piso superior e que tinha idade para ser filho dele – fazia ranger o soalho. [Na verdade, conduzia este vizinho a sua vida em paz, e os barulhos eram mínimos e a horas lícitas.] Era... muita coisa.
Um dia, farto de ouvir estas má-criações – e certo de que algumas, que empalideceriam até um carroceiro, lhe eram dirigidas –, o jovem bateu-lhe à porta e perguntou-lhe se era ele o alvo de tais palavras empestadas. A reacção do homem foi inesperada e desarmante. Ficou mudo, de garganta gaga e acanhada, e pôs-se a cabecear negativamente. Outras situações semelhantes – mais insultos; mais chamadas de atenção – vieram a surgir. E o homem meneava a cabeça, balbuciava, negava e chegava a invocar o amor de Deus em prol da sua inocência.
Enfim, aquele era um comportamento rápido numa lógica evolutiva e adaptativa – tanto estagiava na latrina como logo emudecia frouxamente e subia pressuroso aos céus. Era um bom exemplo de sobrevivência dos mais aptos – ou dos mais manhosos e cobardes.
O senhorio do prédio sabia destas coisas – ouvia-as, ao longe; e outros vizinhos reportavam-nas também. Um dia deu um aviso ao homem. [Se o aviso foi o primeiro ou o décimo, se foi bíblico ou pragmático, não se sabe.] Desde sempre que, quando emergia nas redondezas a figura do senhorio, o homem calava-se de imediato, enfiava-se como um rato na toca e enclausurava-se fechando a porta. Após o aviso, isto passou a acontecer de forma mais expedita, dobrando o homem ainda mais a cerviz.
A mulher ia chegando e sofrendo, sem diferença nos dias. Tentava desculpar a estirpe daquele traste que Deus se lhe havia deparado em casa. Para ela, as razões de tais posturas deviam tombar sem misericórdia sobre a cabeça dela. Era ela a culpada.
[Discutíamos, eu e um amigo, a pergunta que é o título desta crónica. [Na realidade, fui eu que encetei a discussão.] O meu amigo disse-me que há perguntas que são vãs, presumidas, escorregadias. De qualquer modo, acrescentou, poderia dizer algo – mas sem entrar, por falta de pachorra, nos domínios da filosofia. Assim, contou-me esta história.]

[Crónica publicada no JM, 12-XI-2016, p. 2.]

Sem comentários:

Enviar um comentário