sábado, 15 de outubro de 2016

Crónica 61 [O Ocaso]

Entrou no hospital com um tumor na garganta.
Bem – entrou no hospital porque, pouco a pouco, os ataques de tosse subiram até parecer que lhe partiam as aduelas; porque cuspia sangue – cada vez mais sangue; e porque ficou, de súbito, com o esófago vedado – a saliva, cerca de dois litros que o corpo produz por dia, tinha de ser cuspida. [Por esta razão, já no hospital, a voz foi se lhe embargando até se tornar um gargarejo cavernoso.]
Exames foram feitos – e perdidos, e achados, e refeitos, e só tarde mereceram a atenção de um médico. Depois de os ver, o médico disse aos filhos: “Ele ‘tá frito.” Era um cancro.
Os filhos, entre o odor esterilizado e as paredes descoradas do hospital, ficaram aparvalhados por esta estocada inesperada – por saberem da doença e por só saberem, nesse momento, o quão grave era o estado do pai. Sentado na beira de uma mesa, o doutor responsável e um outro colega começaram a discutir os presumíveis tratamentos, os prováveis desfechos, as soluções.
Não havia solução. O homem ali ficou, no hospital, com uma dieta intravenosa e de morfina enquanto o cancro ia plantando metástases como minas no corpo. Durante pouco mais de um mês mudou várias vezes de quarto. Por fim, recolheu a um quarto de uma só cama – o quarto de isolamento.
Entre as visitas que apareceram, numa tarde o melhor amigo surgiu e ficou, de pé, de braços cruzados, num dos cantos do quarto, em silêncio cúmplice com o homem doente. Este não conseguia articular palavras audíveis; o visitante não disse nenhuma. Não eram precisas palavras – ali, estando as coisas como estavam, só estorvariam. Por fim, o amigo chamou o amigo doente, despediu-se e mostrou o punho com o polegar virado para o tecto. O homem com o tumor respondeu da mesma forma. 
Um dos filhos perguntou, no ocaso desta história, se o pai poderia dar uma volta rápida. Os médicos e os enfermeiros, com humanidade e face ao inevitável, anuíram – contanto que o passeio fosse mesmo curto. Foi reforçada a morfina ao homem e tirou-se-lhe o cateter. Uma enfermeira forneceu-lhe um pacote de açúcar para que, em caso de fraqueza, levasse alguns grãos aos lábios.
O filho levou-o, primeiro, à freguesia natal, no norte da Ilha. O homem percorreu de carro – não quis apear-se – o seu sítio e olhou uma derradeira vez para a infância e para a juventude.
Depois, quis ir ao local onde trabalhava, numa freguesia do sul da Ilha. Aí desceu da viatura e visitou a equipa que chefiava, que o recebeu com reconhecimento e desvelo. Olhou uma derradeira vez para a sua vida.
Tudo isto feito – percorrido todo este caminho –, no carro o homem levou à boca, de imediato e com fúria, o açúcar e começou a tossir com espasmos violentos. O filho pediu-lhe que tivesse calma, disse-lhe que daí a pouco estariam no hospital, e carregou no acelerador.
Quando o dia seguinte nasceu, o pai já não pertencia a este mundo.
Um outro filho, semanas volvidas, viu as coisas que o pai tinha deixado. Encontrou, desgarrado e solitário, um livro de contos policiais de Patricia Highsmith – O Álibi Perfeito. E depois deu de caras com um exame médico feito um ano antes de o pai entrar no hospital – exame que o pai porventura não leu, ou não soube compreender, e que não mostrou ao médico, e que o médico não exigiu que fosse mostrado. Perdida entre o dialecto técnico e especializado que o documento apresentava, o filho pôde ler esta coisa: “Suspeita de neoplasia.”

[Crónica publicada no JM, 15-X-2016, p. 2.]

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