sábado, 20 de agosto de 2016

Crónica 56 [Rescaldo]

Parecia-lhe que o pior – aquilo que ninguém imaginava acontecer: um inferno de fumo negro e casas como fornalhas – havia já passado. Mas, no dia seguinte, após um jantar leve, olhou – vigilante – pela janela, com os dedos da mão direita pousados sobre o lábio inferior. E viu: subiam, das entranhas de umas ruínas calcinadas, três ou quatro moradias acima na estrada, umas baforadas de fumo esbranquiçado. O monstro – aquele bocado do monstro – tinha ficado adormecido; e agora respirava, com pequenos haustos perversos, indiferentes à memória traumática.
Pediu à mulher que telefonasse a pedir ajuda e voou estrada acima. [Pareceu-lhe que o fumo começava a ficar mais negro. Entretanto, a noite aproximava-se. Que cores percebem os olhos, quando no dia anterior só se viu fumo preto e labaredas?] Encontrou pessoas das redondezas também alarmadas – pessoas que, antes, tinham sido seus vizinhos: vizinhos que não conhecia, cujos nomes não sabia, com quem nunca havia discutido a meteorologia ou os exacerbados preços dos alimentos nos supermercados. Vizinhos, na verdade, com quem tinha sido irmanado quando o lume tentou penetrar no coração da cidade. Ele e eles – nós de uma mesma rede que tentou suster o monstro. Missão cumprida – missão, porém, que agora voltava a reclamar esforços. O monstro – uma réplica dele, pelo menos – voltava a dar de si, contra a necessidade de descanso.
Quando entrou na quinta, na casa, nas ruínas – como poderia denominar aquilo? –, viu os escombros que, por dentro, incubavam o fumo. Escombros na noite – pedras, carvão e ferros que tornavam o chão uma paliçada. Se havia vidros, não os viu. Ele alcançou um homem que trazia um balde de água. Depois, uma outra vizinha ligou e passou-lhe, do outro lado da rua, uma mangueira. Começou a aspergir, sozinho, os escombros. O fumo, todavia, parecia se alimentar da água. [Que diabo será isto? – pensou ele.] Quando deu por si, ao seu lado estava um homem franzino, também disposto a ajudar. [Nunca tinha discutido com este vizinho a possibilidade de chuva em Outubro ou Novembro, o calor deste Agosto, a carestia de vida, os impostos que levavam couro e cabelo. Quando deu por si, estava a trabalhar lado a lado com este homem, como irmãos que não precisavam de muitas palavras para comunicar.]
O homem franzino começa a deitar as mãos ao entulho – como quem quer esventrar o monstro e descobrir, nas entranhas, a bílis incendiária. Nestas entranhas tinham permanecido bolsas de oxigénio e polímeros – e outros pastos para o fumo que subia. Ambos usaram as mãos como peneiras. Viraram pedras que ferviam – e queimaram-se. Desenterraram farrapos de carpetes e sacos de plástico – e molharam bem o que iam desenterrando. Evitaram os ferros enferrujados que os ameaçavam. Um deles arrancou uma barra de ferro e usou-a para levantar o entulho, enquanto o outro tentava afogar com a mangueira o que estava nas profundezas. Um avisou o outro para ter cuidado – poderia haver vidros no chão, à espera de mãos afoitas. [Havia, de facto – mas ninguém se cortou.] Afogaram enfim o atrevimento do fumo.
[Muito foi já dito e escrito. Neste momento, quaisquer palavras que eu possa ajuntar parecem-me descuidadas, frívolas, apócrifas. Por pouco, aliás, o desastre não me roubava esta crónica. É tempo de agir, de cuidar, de prevenir – e de agradecer. No rescaldo, este é o meu pequeno tributo aos heróis da minha terra.]

[Crónica publicada no JM, 20-VIII-2016, p. 2.]

sábado, 6 de agosto de 2016

Crónica 55 [Uma Infância]

Por causa deste Agosto que ferve, perguntei ao meu interlocutor – um homem com a minha idade, de barba preta e coçada – como tinha sido a infância dele. Boa? Má? Havia me recordado de uma crónica de José Saramago, sobre as férias da infância – «as únicas férias maravilhosas que já tivemos», «esses infinitos meses para os quais não havia projectos, porque então não os fazíamos e porque, mesmo antes de vividos, já eram realização.»
Porém, nem a lembrança desta referência literária nem uma qualquer boa intenção – penso que existiu, a intenção; e que seria boa – me salvaram da avaliação que da pergunta fez o meu interlocutor. Vi que ficou enfadado – ao início. Depois, os seus olhos vestiram uma capa vítrea de perplexidade – pelas memórias da infância que lhe começaram a assomar. E, com vagar, tocou ele uma melodia inexorável na harpa da voz.
Que tinha uma lembrança de quando ainda era bebé de berço. Que tinha a lembrança de uma jovem mulher, de cabelos de ouro, que o olhava do alto – para o berço. [Eu não disse nada.]
Que, passados uns anos, brincava um dia no chão, com um carrinho. Que de repente levantou a cabeça e olhou para a direita, para onde o sol estava. E que lhe advieram perguntas de um canto obscuro. “Porquê isto? Porquê o mundo? Porquê estes olhos, estas janelas? Porquê eu? Por que razão estou aqui? Porquê?” [Acrescentou que hoje tenta adormecer – que faz por adormecer, com ardor – estas perguntas. Calado – eu fiquei calado.]
Que um dia fitou o sol – e que o disco laranja toldou-se para um azul que pulsava. [Ele não usava óculos – nunca usou.] Que a sua professora primária perguntou à turma de que cor era o sol, e que ele – o melhor aluno, laureado com ênfase e regozijo – havia dito que era azul. Que a professora o havia increpado com ênfase e fúria. [Nada ripostei.]
Que ia até ao terraço da sua casa forrado de telas de alcatrão por causa das infiltrações. [No Agosto o alcatrão sobejava e ficava peganhento.] Que aí ficava – subia a uma nespereira raquítica e paciente, cujos ramos nunca partiram com o seu peso. Que olhava – olhava, sem tempo, a fímbria em que o mar se juntava à cor ocre do horizonte. [Assenti com a cabeça.]
Que o irmão lhe havia assinado a cara com um estralo, numa tarde quente de Agosto, perante os outros miúdos das vizinhanças. Que o seu destino tinha ficado escrito a partir desse momento.
Que gaguejava, que era zombado, que lhe teciam brincadeiras nas costas, que o empurravam e lhe espetaram pioneses nos braços. Que era sovado – à entrada da escola, dentro da escola, fora da escola. [Bullying – é assim que se diz, certo? Eu tossi. Continuei a ouvir.]
Que um dia, de noite, ao vir da casa de uns primos após um dia esquecido, viu ao longe três ou quatro miúdos que, para fugir do aborrecimento, de certeza que lhe iriam bater. Que, pressentindo essa intenção, partiu uma cana vieira e, dessa vez, se defendeu com uma coragem imperativa – correndo, depois, com abalo e suor o caminho íngreme até casa.
Hoje – disse-me ele – achava que grande parte da nossa felicidade estava no apaziguamento, ou no esquecimento, das memórias da infância. Apaziguar é difícil e carece de coragem – porque implica um confronto procurado, constante, um projecto de vida. Esquecer é impossível – porque envolve, na soberania da nossa vulnerabilidade, um confronto esporádico, de que se foge. A infância. Feliz? Infeliz? Ele hoje já não sabia dizer.
[E eu não disse nada – que poderia eu dizer?]

[Crónica publicada no JM, 06-VIII-2016, p. 2.]