sábado, 9 de julho de 2016

Crónica 52 [Teatro dos Dias]

Sobe o pano. Várias imagens afloram à boca de cena do teatro dos dias – teatro de negativos, de sombras. Imagens assim.
Dois jovens, à mesa de café, debruçados sobre duas maquinetas – e uma poncha dividida e amendoins com casca –, comunicam através de trejeitos e dialecto tribais. Tribais – ou internacionais: se fosse outro o país, no hemisfério ocidental pelo menos, dir-se-ia que pouca diferença haveria. Gestos francos e língua franca – num mundo cada vez mais igual.
Uma mulher olha, com olhos de metal, para o comprimento da saia de outra. Ao olhar parece que se ouve, por entre os ruídos dos carros que passam na rua, uma lâmina a arrancar uma faísca de um escudo.
Um homem percorre a estrada sem tratuário – e tosse com estardalhaço. Ao fazê-lo, tenta acertar cada contração com um passo veemente da perna direita no asfalto.
Uma velhota, no lado contrário da estrada – também sem tratuário –, apoia-se, com lentidão, no braço de um homem que veste um colete sinalizador de verde florescente. O sol demora-se, a pique, nas alturas.
Um homem – um caminhante –, sempre de fato, percorre a cidade com um jornal enrolado debaixo do braço. Vi-o muitas vezes, nas suas deambulações, acompanhado – primeiro de dois outros homens, depois de um só. Por fim – hoje –, está só. Numa tarde, nos arrabaldes da cidade, vejo-o vociferar para o vazio, de olhos postos no céu, e agitar com impetuosidade os braços – com o jornal, agora, na mão à laia de arma.
Mais adiante, um homem franzino, num clímax de raiva, atira o telemóvel a uma parede de crespo. [Depois, a atenção fugiu-lhe para uma coluna de fumo que subia, e que gerava sirenes de carros de emergência. Um outro drama tinha lugar.]
Uma senhora, no passeio de uma rua, assusta-se com uma voz – de cólera, de desespero – que explodiu num carro que passou com velocidade.
Dois velhos recordam, à porta de uma clínica médica, uma bebida que há décadas era consumida em festas e arraiais: uísque à portuguesa, ou seja, aguardente de cana com ginger ale. Um deles pergunta: “Olha, e aquela coisa na Inglaterra? Votaram p’ra sair da Europa e agora os políticos que defendiam a saída ‘tão todos a saltar do barco como ratos?” Diz o outro: “Aquilo ainda vai ficar tudo em águas de bacalhau.” Isto dito, o primeiro homem tira do maço de tabaco um cigarro e acende-o. Diz o outro: “Ainda não largaste isso? Olha que ainda vai aumentar o preço e vai trazer imagens de gente doente.”
Um casal de namorados adolescentes – ele enorme, ela pequenina; ele o dobro do tamanho dela – pára no meio da praça. Ela furiosa, ele desesperado; ela a força, ele a fragilidade. Ela olha para a cara dele; ele olha para os ares. [Há uma coluna de fumo ao longe que se torna mais negra.]
Uma adolescente que vestia de preto e uma velhota andrajosa chocam à boca de uma esquina. [O telemóvel da jovem caiu ao chão. Não ficou danificado.] Espantadas, seguraram-se nos braços uma da outra – um choque, dir-se-ia, que se transformou num simulacro, ou numa intenção, de abraço.
Cai aqui o pano deste teatro.

[Crónica publicada no JM, 09-VII-2016, p. 2.]

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