sábado, 19 de março de 2016

Crónica 44 [O Humor]

«Há vários temas tabus na nossa sociedade, mas há um de que não se fala.
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«Pode parecer insólito, uma redundância, mas... É o humor. O humor – o riso, a gargalhada, a graça, a ironia… É verdade, não se fala dele.
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«Está bem: não se fala do humor na mesma medida em que, como se costuma dizer, explicar uma anedota é fazê-la perder a piada. Mas isso é um comentário óbvio e previsível – como tu. Não se fala do humor porque, sendo tão importante, mais importante se torna mantê-lo implícito, desapercebido, como um alquimista cujo vulto não se vê. Se o víssemos e à sua pedra filosofal – se dele tivéssemos a mínima percepção racional –, o alquimista ficaria despojado das suas fórmulas, tornar-se-ia um comum e mortal humano, ganharia vergonha – ou raiva – e fugiria.
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«Certo. Então o que é? O humor, o supremo humor, é – repara! – a resolução do embaraço que nós sentimos face ao absurdo. É o que acontece quando tomamos noção da realidade no que ela mais tem de ilógico e contraditório – a realidade que, quanto mais verdadeira, mais difícil é de aceitar como tal.
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«A realidade é uma convenção, uma pretensão, um pacto social… Está bem, como queiras. Posso continuar?
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«Enfim, isso leva-me a dizer que o humor, o supremo humor, acontece quando existe a exposição da verdade. E rimos porque, tornando-nos conscientes do que é a verdade, rimos para desvalorizar, para nos tornarmos inconscientes, para voltarmos a mergulhar na nossa vidinha.
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«Por exemplo: acontece quando alguém fala com um amigo, ou vai ao psicólogo ou ao psicanalista, e começa a contar, num acto de introspecção – de redenção –, a sua vida, a sua realidade, a sua verdade. Se essa pessoa não rir do absurdo em que está – em que a gente está – mergulhada, restam-lhe outras soluções para além do humor, nenhuma delas necessariamente melhor: desconforto, tristeza, raiva, desespero, enfim... Soluções de quem quer, à força, mudar a realidade.
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«Pois, por isso é que o humor é atributo de pessimistas e de trágicos.
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«Atributo, sim – ao mesmo tempo privilégio e fardo. E pessimistas e trágicos, também. Pode parecer estranho, mas a verdade é que os optimistas – os contentados – estão sempre demasiado ocupados – ocupados em serem sérios ou moralistas.
[...]
«Onde li o que estou a dizer? Eu tenho lá tempo para ler! Ou bem ver – e matutar nas coisas –, ou bem ler. Já sabes, primo, eu ponho-me em casa, ao fim do dia, com um copo com aguardente e meio maço de tabaco, a olhar para as paredes, e saem estas coisas, estas frases, loucas.
[...]
«Sim, humores e piadas há muitos, obviamente. Queres falar de coisas mais comezinhas, não é? Vê, por exemplo, essa grande instituição – a dita piada amarela. Digo-te uma coisa: uma boa forma de conhecer uma pessoa é contar-lhe uma piada amarela. Contar-lhe a sós – e depois num grupo. Se souberes medir as reacções, vais conseguir perceber: quem te aprecia, quem te despreza; quem é bondoso ou é falho de carácter; quem calcula e não calcula; o narcisista, e quem não o é; quem é frívolo...
«Espera, estás aí com esse sorriso amarelo... Vais usar esta conversa numa crónica, não vais? Que tristeza – vais cometer a proeza de escrever sobre o humor sem teres graça nenhuma. A verdade, também, é que nunca tiveste muita piada. Bem, então põe lá, na crónica, que fui eu, teu primo, o Juvenal, quem te disse estas coisas. Só não ponhas aquilo da aguardente e do fumo. Diz que são cada vez mais...
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«Sim, tabus. Cada vez mais.»

[Crónica publicada no JM, 19-III-2016, p. 2.]

sábado, 5 de março de 2016

Crónica 43 [Balança]

«Bem que se pode, se pensarmos nisso, representar uma sociedade através de uma balança. De um lado, num dos pratos, pões penas; do outro lado também. Só isso – penas. [Não se trata da Pesagem das Almas do Antigo Egipto. A não ser que falemos de uma alma colectiva.] Se juntares milhares apercebes-te que os pratos vão começar a ficar cheios – e que a balança vai começar a pender para um dos lados.
«Penas, que é como quem diz: pequenas coisas – das mais pequenas; coisas em que ninguém repara, mas que são, de resto, os compassos quase imperscrutáveis que marcam o ritmo de uma comunidade.
«Um lado e o outro lado, portanto, um prato e o outro prato – silenciosos e leves ao início, vociferantes e pesados no fim. Dois lados sempre concorrentes.
«Queres exemplos? Eu dou-te dois – que passam entre as malhas, cada vez mais lassas, da rede da nossa observação e do nosso discernimento. Porque há coisas que nos deviam chocar; e que nos deviam enlevar – atitudes de descaso e de apoucamento; acções de generosidade. Mas ninguém olha para elas. Cá fora, fora dos pixels e dos padrões das redes sociais, já ninguém tropeça em nada que não seja óbvio – seja bom, seja mau. Bem.
«Dois velhos jantavam – sobre a mesa uma garrafa de vinho, vertido em copos feitos para sumo, e frango assado comido à força de dedos. Ao lado deles um adolescente, que os conhecia. A certa altura um dos velhotes vira-se para o rapaz e diz-lhe algo assim: “Vocês, pequenos, hoje não sabem tantas coisas como a gente da minha altura. Diz-me: quantos são X vezes Y?” O rapaz, solícito e respeitoso, respondeu pronta e acertadamente. O velho inquiridor, não desarmando – e borrifando-se afinal para a resposta –, desinteressa-se do jovem, vira-se para o outro velho e diz: “Pois, mas, no nosso tempo, o que se aprendia na escola era mais do que estes pequenos agora aprendem.”
«O rapaz ficou assim, desiludido, a olhar para o tempo. Percebes o que aqui se passou?
«Ao invés... Entraram uma mãe e uma filha num bar. A mãe pede cigarros e paga com uma nota de 20 euros – depositada com hesitação, algum sentimento de culpa porventura, sobre a mesa. A filha, uma menina que teria uns 10 anos, com voz baixa implora um chocolate – desses que são sorteados quando se inserem, numas máquinas, 50 cêntimos; uma fita de cor dentro de uma bola que é devolvida pela máquina anuncia a qualidade e o tamanho da guloseima. A mãe, não dando ouvidos, sai porta fora. A menina, vencida, segue-a cabisbaixa. Eu e o barman, que é meu amigo, ficámos a observar esta cena. Daí a 30 segundos volta a criança, com 1 euro, e pergunta – como é que fazia para tirar o chocolate. O meu amigo diz-lhe: “Espera, filha, isso não é 1 euro, são 50 cêntimos. Deixa-me trocar o dinheiro.” Vi depois que saíra um desses chocolates pequenitos, que nem a vista alegravam. Intuí o que o meu amigo – ele, a quem já vi dar de comer e beber a gente sem dinheiro – iria fazer. Deu à menina, sem alarde, um chocolate enorme – um bloco rectangular de 12 por 30 centímetros, pouco mais ou menos – que não correspondia ao resultado poucochinho do sorteio da máquina. A menina saiu a correr do bar, no encalço da mãe, felicíssima. Eu virei-me para ele e disse-lhe: “Eu sabia que tu ias fazer isso.” E ele sorriu.
«Não é preciso muito, enfim, para encher os pratos desta balança. E não é preciso muito para que um dos pratos vença, inexoravelmente, o outro.»

[Crónica publicada no JM, 05-III-2016, p. 2.]